Melancolia de Eduardo Verderame


Melancolia – uma exposição de Eduardo Verderame

Em Pisa, na Itália, perto da famosa torre inclinada, existe o Museu da Sinopia. A sinopia era uma fase do processo de produção dos afrescos, técnica que consistia na pintura em uma base de gesso ou argamassa ainda úmida, daí o seu nome “a fresco”. A sinopia seria, por assim dizer: o rascunho do afresco: uma primeira camada de gesso onde era desenhado o esboço das figuras em um tom vermelho-amarronzado (um pigmento chamado sinopia). Esta camada servia como referência para o artista, que aos poucos ia cobrindo com a camada final.
Além de haver belíssimos desenhos, o Museu da Sinopia é fascinante por dois motivos:
1º Estamos vendo algo que todos os nossos antepassados (exceto os criadores dos afrescos originais), não viram, obstante ter centenas de anos.
2º Estas sinopias tem curiosamente aspectos comumente associados a pintura moderna e contemporânea: a aparência de inacabado, do rústico, com manchas diversas... Enfim, temos a arte dos mestres renascentistas, sem toda aquela parafernália que a pintura só conseguiu se livrar no final do século XIX.
Na poética de Eduardo Verderame, esta arqueologia visual , estas escavações arquetípicas tão presentes em seus trabalhos, cumprem uma função similar a da sinopia. Revelam algo ainda não visto nos antigos. Atualiza um olhar para algo que já foi muito olhado.
Verderame pesca em mares profundos, não só da história da arte, mas de outras histórias: medievais, matemáticas, simbólicas.
Assim, os sólidos platônicos de Wenzel Jamnitzer (1507-1585) se transformam em uma constelação cósmica. A abstração matemática dos quadrados mágicos se revelam em uma expressão puramente gráfica, encantamentos geométricos. Lembrando-nos que a arte antiga, a sua maneira, era bastante conceitual na forma de lidar com seus elementos. E que foi aí também, na Abstração Matemática, na Geometria Projetiva e na Lógica, que se balizou os fundamentos teóricos de onde eclodiria toda (r)evolução tecnológica que é chamada por muitos de Cibernética. Que nos fascina e nos apavora ao mesmo tempo, assim como o cavaleiro sem cabeça da obra “Para Conhecer os Segredos da Guerra” (peça feita em recorte sobre uma placa de alumínio que integra a exposição Melancolia).
Apesar de seu aspecto absolutamente contemporâneo, tem em si a inquietação da busca de algo que se perdeu no passado. Uma inquietação que também vemos nos manequins, e bustos das pinturas de De Chirico. No tempo do eterno presente Verderame ousa olhar para a história. Puxa coisas lá de trás e joga para o “aqui e agora”. Ou vocês acham que a Melancolia não é um tema atual? Cumpre esclarecer ao público, no entanto, que aquilo que os antigos chamavam de Melancolia hoje em dia é identificado por alguns setores da medicina como “ transtorno bi-polar”.
O pathos melancólico foi explicado por Hipócrates e Galeno com base na teoria dos quatro humores que regulam o funcionamento do corpo e da alma. As oscilações da bile negra fariam do melancólico um ser inconstante, a um só tempo doentio e genial, impelido a criar para aplacar as oscilações de seu temperamento. (Maria Rita Kehl, artigo de 4/set/11- no caderno “Ilustríssima do jornal Folha de São Paulo
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/il0409201104.htm )

Há algum tempo uma crítica à ideia difundida socialmente de “obrigação de felicidade”. Vivemos no mundo dos sorrisos pasta de dente & felicidade margarina. Isso é fortemente pautado pela mídia e tem por consequência a medicalização das “doenças da alma”. Se por um lado, isto pode representar uma conquista da sociedade humana na luta contra o sofrimento, por outro aponta para uma tendência já alertada por Aldous Huxley em o Admirável mundo novo: uma sociedade formada por seres totalmente medicados e condicionados a cumprirem o que se espera deles. E portanto, uma sociedade sem sofrimento, sem questionamentos, sem senso-crítico.

A gravura de Dürer Melencholia I (1514) é extremamente emblemática, praticamente uma grande alegoria, um tratado visual sobre o mundo em que o artista viveu. O mundo europeu que saía da era medieval para ingressar na chamada era moderna. Na história da arte este momento ficou conhecido por Renascimento e um dos seus aspectos mais significativos foi a redescoberta por estes seres medievais da arte Clássica da Antiguidade. Ideias presentes (consensuais) morrendo, ideias novas surgindo, ideias antigas sendo resgatadas e atualizadas. Basicamente um cenário de crise, de mudança.
Esta é uma das interpretações recorrentes da gravura de Dürer: o anjo central da figura está inquieto, inconformado, muito mais do que apenas triste e desesperançado....Este é aquele momento que “cai a ficha” e nos damos conta que a realidade não é o que achávamos que era, ou o que gostaríamos que fosse: “ a vida não é um passeio pelo jardim” como disse Boris Pasternak. E é claro que isso dói, machuca. E nos deixa tristes ou revoltados, porque aquilo que pensávamos existir não existe mais.

Nos damos conta da falta: a falta que nos move.

Rogério Borovik
curador